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domingo, 17 de abril de 2011

A lerdeza da Pátria
(Gabriel Campos Neiva e José Maria Alves Nunes)

Auriverde pendão que nunca amadurece,
até quando vamos aturar essa vil realidade
que ao teu povo tão profundamente entristece?
Talvez me queira esbravejando,
a gritar palavras de ordem
contra todos os desmandos, abusos
porque enquanto teu povo padece e morre à míngua,
cego e amordaçado com pano embevecido de líquida ignorância,
os teus outros filhos, os magnatas, cheios de ganância,
protegidos por fortes couraças,
escondem-se por trás da densidade de tuas verdes matas,
e de lá lançam leis, regras, bravatas,
impropérios em cascatas
formando o mar de lama
onde teus filhos deserdados se afogam.
Já que és mãe, e és gentil
vamos bradar pelos mendigos desvalidos
Socorra teus filhos, honre teu nome
Antes que todos eles sejam vítimas fatais da fome

quinta-feira, 14 de abril de 2011

A alma faminta

 É tarde. Já passam das três da manhã de acordo com o velho “duas setas” pendurado à parede. Mas alguém - certamente muito inconveniente-, insistentemente, bate à porta. Ele resmunga para si mesmo a perguntar se aquilo era hora de alguém perturbar o sono de outro alguém.
Um sujeito que se sujeita a tamanho atrevimento deve, no mínimo, ter como desculpa o mundo estar pegando fogo. É a única justificativa plausível para cometer tamanho desatino.
Quanto desaforo havia naquele ato infame. E, mais ainda, devia ser gente bem conhecida, pois as batidas eram na porta da cozinha, por onde só entra os mais íntimos da casa.
- Já vai, caramba! É pra ir tirar a mãe na forca? Que chatice – resmungou ele.
Mas ao abrir a porta não detectou a presença de ninguém.
-Ah se eu pego o vagabundo que se presta a um serviço desse.... Fila da puta! Vai caçar o que fazer!
Era a quinta vez que Theodoro, o velho ermitão da Rua Visconde de Cabo Frio, repetia o ritual. E todas as vezes, mal voltava pra cama, novamente as batidas se repetiam.
Desta feita, cansado de tanto deitar e levantar, decidiu dar um basta àquela brincadeira de péssimo gosto. Abriu mais uma vez a porta e, nada constatando, decidiu esconder-se atrás do tronco da velha amendoeira que fazia sombra no quintal e de lá ficar espiando.
- Esse desgraçado vai me pagar caro por conta dessa brincadeira. Não quero nem saber quem é – dizia ele -. E decidido, armou-se de um velho pedaço de madeira, de tronco de aroeira, e atento - praticamente sem piscar olhos - ali ficou à espera de tão abusado vagabundo.
Não tardou e novamente ouviu o barulho na porta. Entretanto, para sua surpresa, embora apurasse as vistas na tentativa de enxergar, nada via.
- Cruz credo! Vá de retro!
Crente, e temeroso das coisas do além, começou a fantasiar mil histórias. Lembrou-se do tempo de menino. Os causos de assombração. De mula sem cabeça. Enfim... e ficou ali paralisado até finalmente pararem as batidas na porta. Era noite de lua nova, e o breu predominava. Pé ante pé voltou para o interior de sua casa, e não mais dormiu aquela noite. Assim, viu raiar o dia.
- Que sono! Mas tenho que cuidar da vida. Tenho muitas coisas a fazer. Mas em primeiro lugar tenho que ir à capela, rezar... ora veja! agora me aparece até assombração. Valha-me Deus!
E não tendo outro jeito, levantou-se. Escovou dente. Lavou rosto, e depois se dirigiu à cozinha para tomar o café da manhã.
Abriu a tampa do fogão e apalpou o espaço do forno. Estranhou não estar ali o restinho do queijo que guardara.
- Estranho! Tenho certeza que guardei aqui.
Evitou olhar a porta. Assim, nem percebeu que havia no cantinho inferior dela um buraco de tamanho mínino. Apressado, resolveu não fazer café. Vestiu o velho camisão preto que lhe batia o calcanhar e saiu para ir à capela rezar pela alma faminta.

quinta-feira, 7 de abril de 2011


Instabilidade

Sua presença já não provoca em mim o alvoroço de antes. Já não tenho aquelas tremedeiras nas pernas, o baticum no coração, nenhum sinal de suor nas mãos. Nada. Consegui, enfim, tomar as rédeas e controlar as reações que me assomavam toda vez que ouvia tua voz, ou mirava teus olhos. É verdade. E quer saber mais? Às vezes rio, quando me pego a pensar o que tanto me impressionava em você. Penso que era algo físico, porque fui recobrando minhas faculdades à medida que ia te conhecendo.
Bom, mas o importante é que  recuperei minha razão, e controlo o turbilhão de emoções que me desencadeava toda vez que te via ou pensava em você, e me impedia de reparar teus defeitos. E você os tem. E como tem. E assim, posso avaliar melhor tudo isso.

Talvez tenha sido fantasia todo aquele sentimento. Quem sabe foi uma empolgação juvenil causada pela intensidade da beleza do azul de teus olhos que mais parecem o céu de tardes de verão?! Não sei. Minha certeza hoje se resume em saber que o fascínio que sua figura me impunha, embora ainda exista, não é mais algo sem cabresto, que ao menor sinal desembestava, sem controle.
 Controlados os impulsos para os quais as emoções me empurravam, consigo enxergar sua figura como um ser humano normal. A diferenciar dos outros, apenas esse jeito de me olhar que, por vezes, ainda me faz sentir presa acuada, prestes a cair em uma armadilha, ou cair nas tuas garras de caçador, e me submeter às tuas vontades, aos teus caprichos, nos limites territoriais de teus domínios.
Confesso que ainda me atrai esses seus olhares de cobiça. Essa certeza que você deixa transparecer de que eu sou o rio, e você o mar imenso, meu destino, onde chegarei, por mais que eu dê voltas, prolongue o caminho contornando montanhas, despencando em cachoeiras, formando lagos, lagoas, me dividindo em braços, riachos, igarapés...
Você é assim; como o mar, nada parece abalar sua certeza. E enquanto eu luto para conter as reações, você vai se fartando com as águas de outros rios.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Desapropriação
E quando dei por mim tu estavas fazendo aceiros e fincando estacas a demarcar espaços no meu coração.
Chegou sem nenhum aviso. Ignorou completamente todas as placas de “É proibido”. Adentrou e se instalou. Classificando sentimentos, monopolizou o amor.
Apossado. Editou leis estapafúrdias, decretos ditatoriais, portarias escravocratas e ordens de serviço de toda ordem. Com bravura, impôs limites, proibiu a caça, a pesca. Fixou placa de “propriedade particular”. 
Ocupou todos os pontos cardeais. Fez da área um grande latifúndio. Edificou casa, mil janelas, no lugar mais nobre. Escreveu endereço em placa de cobre e pendurou na cancela.
Percebeu todos os mananciais que antes banhavam minhas entrâncias cordianas e que foram assoreados por falsos amores. Recuperou riachos, mansos regatos, cachoeiras, rios e mares. Fez reflorestamentos, exterminou erosões e trouxe de volta os passarinhos.
Mestre em agronomia, fez uso de técnicas de hidroponia, irrigou trechos áridos e, assim, transformou ares e hectares.
 Nos vastos jardins, sem uso de agrotóxicos, exterminou ervas daninhas, cultivou amor agarradinho, amor-perfeito, bromélias, margaridas. E na quinta muitos pés de ata, só porque sabia ser minha fruta preferida.
Eu de cá só observava você mudar as paisagens; vi abrir estradas vicinais que te levavam para os mais recônditos recantos; vi formar jardins coloridos e perfumados às margens de lagos de águas cristalinas, vi recuperar bosques...
Nada fiz para impedir seus avanços. Hipnotizou-me o mar verde-azulado represado em teus olhos, mistura de céu e floresta. Não tive forças pra resistir à tua beleza, teu entusiasmo, enfim... Entreguei-me.
Vamos ver no que dá.

sábado, 2 de abril de 2011

Almas

Tantas almas há em mim:
Á tímida
A boa
A má
A tranqüila
A abnegada
A afoita
A desesperada...
E cada uma delas cheia de razão
Aponta umas às outras
Culpadas pela minha solidão
Imagem e poesia

No céu de azul indecifrável
Abrindo as asas sob o sol
Plainam gaivotas
Devotas de Copacabana
Lírica imagem
Aos olhos de quem ama.
O clima é bem propício
a surgir novos Vinicius,
Drumond’s, Tons,
Chicos, Caetanos,
Gênios.
Quem se atreve?
À procura de Pasárgada
(José Maria Alves Nunes. Inspirado em “Vou-me embora pra Pasárgada – Manoel Bandeira)

Um dia, hei de encontrar Pasárgada
a cidade encantadora do Bandeira
e lá fincar meus pés
como um elegante pé de bananeira.
Serei árvore, em meio ao tempo, ali, largada
sob o céu de límpido azul
ponto de pouso de toda a passarada.
Não vou querer as prostitutas bonitas
nem as putas ordinárias, acaso encontre,
para não provocar ciúmes.
De Pássargada, apenas a paz, vou querer
e Rosa, também hei de encontrar
quiçá numa animada roda de samba
contando estórias,
entre meia dúzia de amigos.
Lá, com certeza, apago da memória
as lembranças de um amor perdido