Total de visualizações de página

quinta-feira, 14 de abril de 2011

A alma faminta

 É tarde. Já passam das três da manhã de acordo com o velho “duas setas” pendurado à parede. Mas alguém - certamente muito inconveniente-, insistentemente, bate à porta. Ele resmunga para si mesmo a perguntar se aquilo era hora de alguém perturbar o sono de outro alguém.
Um sujeito que se sujeita a tamanho atrevimento deve, no mínimo, ter como desculpa o mundo estar pegando fogo. É a única justificativa plausível para cometer tamanho desatino.
Quanto desaforo havia naquele ato infame. E, mais ainda, devia ser gente bem conhecida, pois as batidas eram na porta da cozinha, por onde só entra os mais íntimos da casa.
- Já vai, caramba! É pra ir tirar a mãe na forca? Que chatice – resmungou ele.
Mas ao abrir a porta não detectou a presença de ninguém.
-Ah se eu pego o vagabundo que se presta a um serviço desse.... Fila da puta! Vai caçar o que fazer!
Era a quinta vez que Theodoro, o velho ermitão da Rua Visconde de Cabo Frio, repetia o ritual. E todas as vezes, mal voltava pra cama, novamente as batidas se repetiam.
Desta feita, cansado de tanto deitar e levantar, decidiu dar um basta àquela brincadeira de péssimo gosto. Abriu mais uma vez a porta e, nada constatando, decidiu esconder-se atrás do tronco da velha amendoeira que fazia sombra no quintal e de lá ficar espiando.
- Esse desgraçado vai me pagar caro por conta dessa brincadeira. Não quero nem saber quem é – dizia ele -. E decidido, armou-se de um velho pedaço de madeira, de tronco de aroeira, e atento - praticamente sem piscar olhos - ali ficou à espera de tão abusado vagabundo.
Não tardou e novamente ouviu o barulho na porta. Entretanto, para sua surpresa, embora apurasse as vistas na tentativa de enxergar, nada via.
- Cruz credo! Vá de retro!
Crente, e temeroso das coisas do além, começou a fantasiar mil histórias. Lembrou-se do tempo de menino. Os causos de assombração. De mula sem cabeça. Enfim... e ficou ali paralisado até finalmente pararem as batidas na porta. Era noite de lua nova, e o breu predominava. Pé ante pé voltou para o interior de sua casa, e não mais dormiu aquela noite. Assim, viu raiar o dia.
- Que sono! Mas tenho que cuidar da vida. Tenho muitas coisas a fazer. Mas em primeiro lugar tenho que ir à capela, rezar... ora veja! agora me aparece até assombração. Valha-me Deus!
E não tendo outro jeito, levantou-se. Escovou dente. Lavou rosto, e depois se dirigiu à cozinha para tomar o café da manhã.
Abriu a tampa do fogão e apalpou o espaço do forno. Estranhou não estar ali o restinho do queijo que guardara.
- Estranho! Tenho certeza que guardei aqui.
Evitou olhar a porta. Assim, nem percebeu que havia no cantinho inferior dela um buraco de tamanho mínino. Apressado, resolveu não fazer café. Vestiu o velho camisão preto que lhe batia o calcanhar e saiu para ir à capela rezar pela alma faminta.

Nenhum comentário:

Postar um comentário